segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O mundo da canção e da poesia: Chico Buarque


A poesia e a música foram e seguem sendo artes com uma estreita relação. Se bem é verdade que nos últimos anos as preferências poéticas por romper os esquemas rítmicos e silábicos tradicionais, que permitiam adaptar de um género para outro de maneira mais rápida, ainda hoje em dia para muitas pessoas a música é “poesia cantada”. Um dos exemplos foi a atribuição do Prémio Nobel de Literatura a Bob Dylan, pelos seus méritos musicais, considerados de literários pelos académicos suecos.

Chico Buarque é um dos músicos mais destacados do movimento conhecido como Bossa Nova que apareceu no Brasil no final dos anos 50 do século passado. Desde 1966 até os nossos dias, é um cantante que elaborou muitíssimas canções, mas também participou de outros campos da literatura, o mais destacado a narrativa, ganhando o Prêmio Jabuti por seu romance Budapeste. Ademais do seu lavor cultural, é conhecido também como um personagem ligado à política, sendo um dos opositores políticos à Ditadura Militar que teve o poder no Brasil nos anos 60 e 70 e, mais atualmente, ajudando nas campanhas do Partido dos Trabalhadores (PT), chegando a comparecer junto com Lula da Silva quando o ex-presidente estava acusado por corrupção.

Para analisar as influências poéticas nas canções de Chico Buarque, um exemplo muito bom é a sua canção Construção.

“Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado

Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir
Pela fumaça e a desgraça que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague”

Os versos são maioritariamente de catorze sílabas, salvo três que só têm cinco: o estribilho “Deus lhe pague”. Se bem as três últimas estrofes têm rima em <ir>, no reste do poemário não semelha haver um esquema de rima característico.

A canção consta de duas partes: as nove primeiras estrofes e as três últimas. Cada uma das partes tem uma estrutura diferente que vai repetindo. A maioria da canção está construida sob a repetição de palavras proparoxítonas, que ao trocar de contexto ganham novos significados. Como exceção, as últimas três estrofes têm a sua estrutura fundamentada na repetição de infinitivos.

A escolha das palavras proparoxítonas é devida a que não são muito comuns na língua portuguesa, nem nas línguas ibéricas em geral. Portanto, o seu uso chama a atenção do ouvinte sobre elas. A troca de significado segundo o contexto faz que a paranomasia seja a principal figura de linguagem no texto.

O facto de que o poema seja construído com repetições das mesmas palavras clave que trocam de lugar e a raiz disto mudam o seu significado é uma prova da relação que esta canção tem com a poesia, pois é uma figura que se leva repetindo desde a lírica galego-portuguesa. Já Joán Soares Coelho construiu a sua cantiga de escárnio María do Grave, grav'é de saber só sobre repetições com diversos significados da palavra “grave”. Chico Buarque tem, depois de tudo, conhecimentos de lírica medieval, pois até fez versões de algumas das cantigas mais conhecidas como Ondas do Mar de Vigo.

O tema fundamental do texto é a morte dum trabalhador num suicídio/acidente laboral. Um tema que, no final dos anos 60, era polémico: a Ditadura Militar fizera a classe trabalhadora a principal vítima do crescimento económico, no lugar de beneficiá-la dele. Nos anos da Ditadura Militar, o Brasil foi, mesmo com números manipulados, um dos países com maior número de acidentes laborais.Portanto, Chico Buarque constrói a um obreiro anónimo que, duma maneira ou outra, encontra o seu final, vítima duns direitos laborais baixos.

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