terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Uma outra visão do mito de "Itaca": Angélica Freitas.





Angélica Freitas (Pelotas, 1973) é uma das principais vozes poéticas da poesia brasileira contemporânea. Tem um duplo lavor: jornalístico e poético. Também foi uma das coeditoras da revista poética Modo de Usar & Co. Curiosamente, a sua colaboração foi maioritariamente através de antologias, já que só publicou dois poemários independentes: Rilke Shake (2007) e um útero é do tamanho de um punho (2013). Neste caso, analisar-se-á um dos poemas do segundo livro, que tem como tema principal a reinterpretação do mito homérico de “Ítaca”, a ilha à que tem de voltar Ulisses para acabar a sua Odisseia.


Ítaca
se quiser empreender viagem a ítaca
ligue antes
porque parece que tudo em ítaca
está lotado
os bares os restaurantes
os hotéis baratos
os hotéis caros
já não se pode viajar sem reservas
ao mar jônico
e mesmo a viagem
de dez horas parece dez anos
escalas no egito?
nem pensar
e os freeshops estão cheios
de cheiros que você pode comprar
com cartão de crédito.
toda a vida você quis
visitar a grécia
era um sonho de infância
concebido na adultidade
itália, frança: adultério
(coisa de adultos?
não escuto resposta)
bem se quiser vá a ítaca
peça a um primo
que lhe empreste euros e vá a ítaca
é mais barato ir à ilha de comandatuba
mas dizem que o azul do mar
não é igual.
aproveite para mandar e-mails
dos cybercafés locais
quem manda postais?
mande fotos digitais
torre no sol
leve hipoglós
em ítaca compreenderá para que serve
a hipoglós.


Estilisticamente, o poema não segue uma estrutura. Se bem há rima nalguns casos, não há um esquema claro. Também não há uma medição de versos concreta. Em geral, o poema aparta-se dos esquemas estilísticos tradicionais, procurando o verso livre e uma medição irregular dos versos. Outro traço que marca visualmente o poema é a falta de maiúsculas, que iguala o texto, e a quase total ausência de signos de pontuação. Isto destaca mais no início do poema, onde faz-se uma enumeração depois de “lotado” mas nenhum dos elementos leva vírgula.

É curioso que o poema tenha um ritmo pouco “poético”. Semelha mais bem um monólogo oral transcrito, com elementos mais próximos duma narração antes do que um poema. Uma outra vez, o poema semelha sair das convenções clássicas da poesia, redefinindo qual é a fronteira entre a poesia e o resto de géneros.

O tema do poema é uma reinterpretação irónico do mito de Ítaca. Não é o mito homérico, é a ilha grega que existe na nossa realidade. Não é a viagem glorificada de Ulisses que regressa à sua terra natal depois de enfrentar mil perigos, é o conselho a um turista que bem poderia receber numa agência de “viagens”. No lugar de ires visitar essa ilha grega que não tem nenhuma importância, porque não vais à ilha de Comandatuba, no sul do Brasil? Lá há melhor preço.

O humor do poema nasce da expetativa do leitor. Este, ao ver o título, espera um poema de caráter mítico, ou uma reinterpretação moderna como foi o caso da canção Itaca de Lluis Lach, onde “Itaca” converte-se numa metáfora, num objetivo seguramente fora do alcance mas que marca o rumo da nossa vida e que, de o realizarmos, normalmente não acaba sendo o que nós pensávamos que era (“I si la trobes pobra, no és que Itaca t'hagi enganyat. Savi, com bé t'has fet, sabràs el que volen dir les Itaques”). Porém, neste caso temos a Ítaca contemporânea, o objetivo duma viagem turística, motivada pela necessidade na sociedade atual por “desligar”, ainda que seja uns momentos, da vida repetitiva à que estamos habituados. Nesta “Odisseia”, o que importa ao turista é se o preço é muito caro ou se é preciso de levar creme protetora (“hipoglós”), não criaturas míticas nem nenhum tipo de monstro que possa ameaçar a viagem.

A ironia humorística, que em geral está dirigida cara essa “viagem”, também faz piada doutros elementos. Por exemplo, a palavra “adultério”, onde a poeta joga afirmando que esta semelha provir do termo “adulto”, o qual pareceria indicar que “adultério” quer dizer “coisa de adulto”, que só pode fazer um adulto, ou que é precisa de fazer para ser adulto. Em qualquer caso, é uma brincadeira que nasce duma etimologia falsa, jogando outra vez com as nossas impressões.



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