Angélica Freitas (Pelotas, 1973) é uma das principais vozes poéticas da poesia brasileira contemporânea. Tem um duplo lavor: jornalístico e poético. Também foi uma das coeditoras da revista poética Modo de Usar & Co. Curiosamente, a sua colaboração foi maioritariamente através de antologias, já que só publicou dois poemários independentes: Rilke Shake (2007) e um útero é do tamanho de um punho (2013). Neste caso, analisar-se-á um dos poemas do segundo livro, que tem como tema principal a reinterpretação do mito homérico de “Ítaca”, a ilha à que tem de voltar Ulisses para acabar a sua Odisseia.
Ítaca
se
quiser empreender viagem a ítaca
ligue
antes
porque
parece que tudo em ítaca
está
lotado
os
bares os restaurantes
os
hotéis baratos
os
hotéis caros
já
não se pode viajar sem reservas
ao
mar jônico
e
mesmo a viagem
de
dez horas parece dez anos
escalas
no egito?
nem
pensar
e
os freeshops estão cheios
de
cheiros que você pode comprar
com
cartão de crédito.
toda
a vida você quis
visitar
a grécia
era
um sonho de infância
concebido
na adultidade
itália,
frança: adultério
(coisa
de adultos?
não
escuto resposta)
bem
se quiser vá a ítaca
peça
a um primo
que
lhe empreste euros e vá a ítaca
é
mais barato ir à ilha de comandatuba
mas
dizem que o azul do mar
não
é igual.
aproveite
para mandar e-mails
dos
cybercafés locais
quem
manda postais?
mande
fotos digitais
torre
no sol
leve
hipoglós
em
ítaca compreenderá para que serve
a
hipoglós.
Estilisticamente,
o poema não segue uma
estrutura. Se bem há rima nalguns casos, não
há um esquema claro. Também não há uma medição de versos
concreta. Em geral, o poema aparta-se dos esquemas estilísticos
tradicionais, procurando o verso livre e uma medição irregular dos
versos. Outro traço que
marca visualmente o poema é a falta de maiúsculas, que iguala o
texto, e a quase total ausência de signos de pontuação. Isto
destaca mais no início do poema, onde faz-se uma enumeração depois
de “lotado” mas nenhum dos elementos leva vírgula.
É
curioso que o poema tenha um ritmo pouco “poético”. Semelha
mais bem um monólogo oral transcrito, com elementos mais próximos
duma narração antes do que um poema. Uma
outra vez, o poema semelha sair das convenções clássicas da
poesia, redefinindo qual é a fronteira entre a poesia e o resto de
géneros.
O tema do poema é uma
reinterpretação irónico do mito de Ítaca. Não é o mito
homérico, é a ilha grega que existe na nossa realidade. Não é
a viagem glorificada de Ulisses que regressa à sua terra natal
depois de enfrentar mil perigos, é o conselho a um turista que bem
poderia receber numa agência de “viagens”. No
lugar de ires visitar essa ilha grega que não tem nenhuma
importância, porque não vais à ilha de Comandatuba, no sul do
Brasil? Lá há melhor preço.
O
humor do poema nasce da expetativa do leitor. Este,
ao ver o título, espera um poema de caráter mítico, ou uma
reinterpretação moderna como foi o caso da canção Itaca
de
Lluis Lach, onde
“Itaca” converte-se numa metáfora, num objetivo seguramente fora
do alcance mas que marca o rumo da nossa vida e
que, de o realizarmos, normalmente não acaba sendo o que nós
pensávamos que era (“I
si la trobes pobra, no és que Itaca t'hagi enganyat. Savi, com bé
t'has fet, sabràs el que volen dir les Itaques”). Porém,
neste caso temos a Ítaca contemporânea, o objetivo duma viagem
turística, motivada pela necessidade na sociedade atual por
“desligar”, ainda que seja uns momentos, da vida repetitiva à
que estamos habituados. Nesta
“Odisseia”, o que importa ao turista é se o preço é muito caro
ou se é preciso de levar creme protetora (“hipoglós”), não
criaturas míticas nem nenhum tipo de monstro que possa ameaçar a
viagem.
A ironia
humorística, que em geral está dirigida cara essa “viagem”,
também faz piada doutros
elementos. Por exemplo, a
palavra “adultério”, onde a poeta joga afirmando que esta
semelha provir do termo “adulto”, o qual pareceria indicar que
“adultério” quer dizer “coisa de adulto”, que só pode fazer
um adulto, ou que é precisa de fazer para ser adulto. Em
qualquer caso, é uma brincadeira que nasce duma etimologia falsa,
jogando outra vez com as nossas impressões.
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