domingo, 6 de janeiro de 2019

Ondjaki. Análise do poema "apagar o sol".



Ondjaki (Luanda, 1977) é o nome artístico usado por Ndalu de Almeida, uma das vozes mais destacadas da literatura angolana nos últimos anos. A sua posição central dentro das literaturas em língua portuguesa é confirmada pela sua trajetória e longa lista de prémios à sua obra: o Prêmio Jabuti de Literatura no ano 2010, prémio de narrativa mais destacado do Brasil, e o Prémio Literário José Saramago em 2013, que se bem tradicionalmente premiou quase exclusivamente portugueses, ultimamente tem-se aberto ao resto de países da lusofonia, sendo um dos mais grandes reconhecimentos que podem haver nas literaturas em língua portuguesa. A sua obra é, como podemos ver pelos prémios atribuídos, principalmente narrativa, em concreto narrativa breve, mas também escreveu poesia e literatura juvenil. Destaca dentro do seu lavor poético os livros Actu sanguíneu (2000) e Há Prendisajens com o Xão (2002). Porém, neste caso não se vai falar de nenhum dos dois.

Entre outras coisas, Ondjaki é conhecido entre os grupos reintegracionista da Galiza por ser um escritor angolano que colaborou em numerosas palestras e publicações, informando sobre a realidade das literaturas nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e fomentando ideias e repertórios interessantes para a literatura reintegracionista. Neste caso, Ondjaki fez uma publicação em Através Editora, a principal editora reintegracionista, para publicar alguns poemas seus que não foram editados anteriormente. Esta obra é Os modos do mármore + 3 poemas, que saiu ao público no ano 2015. Neste artigo far-se-á uma análise breve dum dos poemas menores do livro, apagar o sol, escrito em 2007:

"cumpren-se as horas castigadas de mim
-dentro faz sombra impermeável à cura e eu
sou este que durmo e acordo o mesmo

venham as flores da escrita, venha o intervalo 
sequencial de dias onde o louco celebra a sua
provisória liberdade, venham os lobos que
hão-de morder os meus convivas 

cumpre-se o destino e o regresso ao
redemoinho - cá dentro faz tristeza, uma
tristeza embaciada que aos outros é jardim 
criativo e cultura de ideias 

fechem a porta ao louco, tranquem-no por
dentro e deixem-no a braços com a fera

venham as flores da escrita, venha o milagre 
da ilusão, venha o intervalo onde o louco
circula como actor normal, soltem a fera
que não se vê chegar pois nasce da sombra
mais próxima, soltem a fera que só conhece o
corpo da vida do louco

que reste ao furioso maníaco apagar o sol,
extinguindo-o com o sal oculto no peso das
lágrimas, que reste ao coitadinho o ressarço 

de quem já vislumbrou a demoníaca criatura, ou
o ombro de quem se aventurar a chegar perto,

que reste ao louco a fúria e a força da sua
sombra por domesticar - que a sua lâmina
seja veloz, ou que a vida um dia, por magia,
o salve de si.

cumprem-se as horas - castigo de mim

cá dentro faz uma sombra impermeável à
vida e eu sou este que durmo e acordo sempre
o mesmo.

venham as flores salvadoras da escrita - o
raro milagre da ilusão, o adorado intervalo
entre parança e sossegamento."

O primeiro elemento a destacar é o estilo característico do poema: a falta de maiúsculas e a limitação do uso dos signos de pontuação. De facto, só três das estrofes estão acabadas em ponto. Isto forma parte duma tendência poética contemporânea que também é apreciável na obra O Martelo de Adelaide Ivánova, entre outras muitas mais, que consiste na libertação da escrita de qualquer elemento que poda obstaculizá-la. Esta escolha permite uma característica interessante: o ritmo de leitura é decidido pelo próprio leitor, e segundo o ritmo escolhido o significado do poema pode mudar segundo o leitor e a interpretação que fez da obra. Um jogo entre o leitor e o autor, um tópico na literatura que leva existindo desde tempos antigos mas que semelha ser cada vez mais frequente nas obras contemporâneas.

A voz poética troca em várias ocasiões, passando no início do poema de 1a a 3a pessoa.  Estas mudanças permitem interpretar que "o louco" do que a voz poética fala em 3a pessoa é ela própria olhada desde fora, mas também poderia-se supor que "o louco" é aquele que não usa da escrita para libertar os seus medos internos e, portanto, fica à vontade do seu subconsciente que o ameaça com a eliminação. A "sombra", os "lobos", a "fera", podem ser, ao mesmo tempo, sinónimos dum mesmo conceito: o subconsciente do poeta, com pensamentos negativos (a sombra) provocados pela tristeza. O motivo detrás desta tristeza não é clarificado no poema. Talvez seja a falta de reconhecimento pela sociedade, que chama à voz poética de "louco", talvez uma angústia existencial que pode não ter mais causa que as próprias reflexões do poeta.

O poema apresenta também um tema interessante: a literatura como atividade de purgação, que permite ao escritor livrar-se dos seus medos internos. O escritor, que está "louco" devido a esse subconsciente cheio de feras, lobos e sombras, passa por "actor normal" a olhos da sociedade graças à escrita. Nesse intervalo breve no que o poeta escreve, o único que fica na sua cabeça são "parança" e sossego. A tristeza na que o escritor está sumido volta-se, desta maneira, "jardim criativo e cultura de ideias".

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